Mrs. Dalloway em Bond Street

Virginia Woolf
Tradução Leonardo Froés

Mrs. Dalloway disse que ela mesma ia comprar as luvas.

Quando pisou na rua, o Big Ben estava batendo. Dava as onze, hora desocupada e fresca, como que enviada para crianças na praia. Mas na oscilação intencional das repetidas badaladas havia algo solene; algo que se refletia no murmúrio das rodas e no embaralhar das passadas.

Nem todas, sem dúvida, nos seus encargos, tinham a felicidade por fim. Há muito mais a se dizer sobre nós do que somente que andamos pelas ruas de Westminster. E também o Big Ben não é nada, senão varetas de aço que a ferrugem teria consumido, não fosse o zelo dos funcionários de Sua Majestade que o mantêm. Só para Mrs. Dalloway o momento era completo; pois junho, para Mrs. Dalloway, era um mês revigorante. Uma infância feliz – e não só às próprias filhas Justin Parry tinha parecido boa pessoa(fraco, é claro, no tribunal); flores no fim da tarde, fumaça subindo; o grasnar das gralhas, do alto, bem do alto, caindo cada vez mais pelo ar de outubro – nada ocupa o lugar da infância. Uma folha de hortelã a traz de volta: ou uma xícara com um círculo azul.

Coitadinhos, suspirou ela, e apressou-se à frente. Oh, bem debaixo das fuças dos cavalos, seu diabrete! E lá ficou, largada na beira da calçada a esticar sua mão, enquanto Jimmy Dawes, o mais longe possível, ria arreganhando os dentes.

Mulher charmosa, firme, cheia de vida, com o cabelo grisalho em estranho contraste com o rosto corado, assim a viu Scrope Purvis, cavaleiro da Ordem do Banho¹, quando ia afobado para seu escritório. Ela se retesou um pouco, esperando que o furgão de Durtnall passasse. O Big Ben bateu a décima; e a décima primeira badalada. Os círculos de chumbo se dissolveram no ar. A altivez a mantinham ereta, herdando, passando adiante a disciplina e o sofrimento que ela conhecia tão bem. Como as pessoas sofriam, como sofriam, pensava, pensando em mrs. Foxcroft ontem de noite na embaixada, coberta de jóias mas sofrendo em silêncio porque aquele belo rapaz tinha morrido e a velha casa da propriedade agora (passou o furgão de Duttnall) ficaria com um primo.

“Muito bom dia!”, disse Hugh Whitbread, erguendo-lhe o chapéu, perto da loja de louças, não sem certa extravagância, já que desde crianças eles se conheciam. “Para onde está indo?

“Adoro andar a pé por Londres”, disse Mrs. Dalloway. “É melhor realmente do que caminhar pelo campo.”

“Nós acabamos de chegar”, disse Hugh Whitbread. “Infelizmente, para ir a médicos.”

“Milly?”, disse Mrs. Dalloway, instantaneamente compadecida.

“Não anda bem”, disse Hugh Whitbread . “É aquela coisa. E Dick, como vai?”

“Está ótimo!”, disse Clarissa.

Claro, pensava ela, voltando a andar, Milly é mais ou menos da minha idade – cinquenta – cinquenta e dois. Assim então era provavelmente isso, sim, foi o que Hugh quis dizer, disse-o perfeitamente – seu velho e prezado Hugh, pensou Mrs. Dalloway, se lembrando com prazer, com gratidão, com emoção, como ele sempre tinha sido tão tímido, como um irmão – seria preferível morrer do que falar com um irmão – quando Hugh estava em Oxford, e veio de lá, e havia uma delas (a tal da coisa!) que talvez nem soubesse se sentar num cavalo. Como então as mulheres tomariam assento no Parlamento? Como poderiam fazer coisas com os homens? Porque existe esse instinto extraordinariamente profundo, algo dentro da gente, não se pode passar por cima disso: não adianta nem tentar; e homens como Hugh o respeitam, sem que o digamos, e é isso que eu gosto, pensou Clarissa, no velho, prezado Hugh.

Ela havia passado pelo Arco do Almirantado e viu no fim da rua vazia com suas árvores finas o monumento branco à Vitória, a encapelada maternalidade, a amplitude e domesticidade de Vitória, sempre ridículas, porém tão sublimes, pensou Mrs. Dalloway, lembrando-se dos jardins de Kensington e da velha senhora com óculos de tartaruga e de Nanny dizendo para parar de se mexer e inclinar-se para saudar a rainha. A bandeira estava hasteada no palácio. O rei e a rainha então estavam de volta. Não fazia muito tempo que Dick a encontrara no almoço – mulher absolutamente distinta. Isso é muito importante para os pobres, pensou Clarissa, e os soldados. À sua esquerda, erguiam-se heroicamente sobre um pedestal um homem de bronze e seu fuzil – a guerra sul-africana. É importante, pensava Mrs. Dalloway, andando para o palácio de Buckingham. Lá estava ele, quadrado e firme, banhado de sol, simples, inflexível. Era, porém, uma questão de caráter, pensava ainda; alguma coisa inata à raça; o que os hindus respeitavam. A rainha visitava hospitais, inaugurava bazares – a rainha da Inglaterra, pensava Clarissa, olhando para o palácio. Tão cedo ainda e um automóvel já saía pelos portões; soldados saudaram; e os portões se fecharam. Clarissa, atravessando a rua, sempre se mantendo aprumada, entrou no parque.

Nem sequer uma folha junho deixara de arrancar das árvores. As mães de Westminster, com seios sarapintados, davam de mamar aos bebês. Garotas em tudo respeitáveis se espichavam na grama. Um homem idoso, abaixando-se com plena firmeza, pegou no chão um papel que desdobrou, que desamassou e abriu completamente para jogar no chão outra vez. Que horror! Ontem de noite, na embaixada, sir Dighton tinha dito: “Basta eu erguer a mão, se precisar de alguém para segurar meu cavalo.” Mas a questão religiosa é muito mais grave do que a econômica, tinha dito sir Dighton, e ela pensou que isso, partindo de um homem como sir Dighton, era extraordinariamente interessante. “Oh, o país nunca saberá o quanto perdeu”, dissera ele, falando por espontânea vontade sobre o querido Jack Stewart.

Pouco a pouco ela subiu a pequena elevação. Agitava-se vigorosamente o ar. Mensagens eram mandadas da esquadra para o Almirantado. Piccadilly e Arlington Street e o Mall pareciam até mesmo esquentar o ar do parque e suspender suas folhas, com calor e brilho, nas ondas daquela divina vitalidade de que Clarissa tanto gostava. Andar a cavalo; dançar; tinha adorado tudo aquilo. Ou participar de longas caminhadas no campo, falando de livros, ou do que fazer da vida, pois os jovens eram incrivelmente presunçosos – oh, as coisas que eles diziam! Mas tinham convicção. A desgraça é a meia-idade. Pessoas como Jack nunca saberão disso, pensou ela; porque nem uma vez ele pensou na morte, nunca soube, pelo que disseram, que estava morrendo. E agora nunca pode lamentar – como era mesmo? – uma cabeça que encanece… pelo lento contágio das manchas do mundo²… Pelo lento contágio das manchas do mundo! Ela se mantinha aprumada.

Mas que algazarra faria Jack! Citando Shelley em Piccadilly! “Você precisa é de um alfinete”, diria ele, que detestava mulheres desmazeladas. “Meu Deus, Clarissa!” – podia ouvi-lo agora na festa em Devonshire House, falando da pobre Sylvia Hunt com seu colar de âmbar e aquele vestido velho e desalinhado de seda. Clarissa se mantinha aprumada porque falara em voz alta e agora estava em Picadilly, passando pela casa de elegantes colunas verdes e com sacadas; passando por janelas de clubes cheias de jornais; passando pela casa da velha ladyBurdett-Coutts, onde já houve um papagaio branco de louça pendurado; e por Devonshire House, com seus leopardos dourados; e pelo Claridge’s onde tinha de se lembrar que Dick queria que ela deixasse um cartão para mrs. Jepson antes de sua partida. Podem ser muito simpáticos esses americanos ricos. Lá estava St. James’s Palace; como um brinquedo de criança com tijolinhos; e agora – ela tinha passado por Bond Street – estava distante da livraria Hatchard’s. O fluxo era interessante – infinito perpétuo. Lords, Ascot, Hurlingham – que era aquilo? Que jeito estranho, pensou, olhando o frontispício de um livro de memórias que se abria esparramado na vitrine em arcada, sir Joshua talvez, ou Romney; brilhante, esperto e reservado; o tipo de garota – como sua própria Elisabeth – o único verdadeiro tipo de garota. E lá estava aquele livro absurdo, Soapney Sponge,4 que Jim costumava citar no pátio; e os sonetos de Shakespeare, que ela sabia de cor. Phil e ela tinham discutido o dia todo sobre a Bela Morena, e Dick, no jantar dessa noite, foi logo dizendo que nunca ouvira falar a seu respeito. Realmente, por isso ela se casara com ele! Porque ele nunca tinha lido Shakespeare! Devia haver algum livrinho barato que ela pudesse comprar para Milly – Cranford,5 é claro! Já houve coisa mais deliciosa no mundo do que a vaca de saia? Se ao mesmo tempo as pessoas tivessem aquele tipo de humor do que a vaca, aquela espécie de respeito por si mesmas agora, pensou Clarissa, pois lembrava-se das linhas gerais; de como as frases terminavam, dos personagens – de como conversavam sobre eles como se fossem reais. Para todas as coisas grandiosas é preciso ir ao passado, pensou. Pelo lento contágio das manchas do mundo… Não mais temas o calor do sol6 … E agora nunca pode lamentar, nunca pode lamentar, repetiu, desviando os olhos para o alto da vitrine; pois um pingo de chuva lhe caiu na cabeça; o teste da grande poesia; os modernos nunca escreveram nada que eu quisesse ler sobre a morte, pensou; e se virou.

Ônibus junto de automóveis; automóveis furgões; furgões carros de aluguel, carros de aluguel automóveis – e ali vinha um automóvel aberto com uma moça sozinha. De pé até as quatro, eu sei, pensou Clarissa, e com os pés que nem se aguentam, pois a garota parecia aos pedaços, quase dormindo no cantinho do carro, após o baile. E mais um carro; e mais outro. Não! Não! Não! Clarissa sorriu complacentemente. De nada se esquecera a obesa senhora, mas essa não! Diamantes e orquídeas a esta hora da manhã! Não! Não! Não! Quando fosse para atravessar, o guarda, excelente, levantaria a mão. Mais um carro ia passando. Quanta falta de encanto! Mas também por que uma moça dessa idade se pintava de preto ao redor dos olhos? E o rapaz com uma menina, neste momento, quando o país – O guarda admirável ergueu a mão e Clarissa, reconhecendo-lhe, sem se apressar, a autoridade, atravessou e andou para a Bond Street; viu a rua estreita e tortuosa, as bandeirolas amarelas; os fios telegráficos, com seus grossos encaixes, se esticavam no céu.

Há cem anos seu tataravô, Seymour Parry, que fugiu com a filha de Conway, descia a pé pela Bond Street e poderiam ter encontrado os Dalloways (Leighs pelo lado materno) indo em sentido contrário. Seu pai já comprava roupas no Hill’s. Havia uma peça de fazenda na vitrine e, aqui, apenas uma jarra sobre uma mesa preta, incrivelmente cara; como o salmão cor-de-rosa e gordo sobre pedras de gelo, na peixaria. As jóias eram requintadas – estrelas cor-de-rosa e laranja, imitações de pedras preciosas, espanholas, pensou, e correntes de ouro velho; fivelas estreladas, pequenos broches que mulheres de grandes penteados já haviam usado sobre cetim verde-mar. Mas nem adiantava olhar! Ela tinha de fazer economia. Tinha de passar pela galeria onde estava pendurado um dos estranhos quadros franceses, como se tivessem jogado confete nele – cor-de-rosa e azul – para fazer graça. Quem sempre viveu com quadros (oi com livros e música, dá no mesmo), pensou Clarissa, não se deixa levar por graça feita.

A Bond Street era um rio entupido. Em relevo real, como uma rainha num torneio, lá estava lady Bexborough. Sozinha em sua carruagem, toda emproada, olhando através dos óculos. A luva branca em seu pulso estava um pouco folgada. E a roupa preta, apesar de bem surrada, pensou Clarissa, foge ao comum pelo que mostra, de educação, de autoestima, de nunca dizer uma palavra demais nem dar margem a mexericos alheios; uma excelente amiga; ninguém podia, depois de todos esses anos, achar um defeito nela, que agora aí vai, pensou Clarissa ao passar pela condessa que, completamente imóvel e empoada, se mantinha à espera, e Clarissa daria qualquer coisa para também ser assim, a amante de Clarefield, discutindo política, como um homem. Mas ela nunca vai a nada, é inútil convidá-la, pensou Clarissa, e a carruagem foi em frente e lady Bexborough passou, levada como rainha em torneio, embora não tenha do que viver e o velho esteja alquebrado e digam que ela já está cansada de tudo, pensou Clarissa, já com lágrimas nos olhos, de fato, quando entrou na loja.

“Bom dia”, disse em sua voz charmosa. Com sua grande cordialidade, pediu luvas, pôs a bolsa no balcão e passou muito lentamente, a abrir o fecho. “Luvas brancas”, disse. “Acima do cotovelo”, e olhou a balconista bem no rosto – será que era a mesma da qual se lembrava? Parecia um pouco velha. “Estas realmente não dão”, disse Clarissa. A moça deu uma olhada. “Madame usa braceletes?” Clarissa esticou os dedos. “Talvez por causa dos meus anéis.” E a moça pegou as luvas cinzentas, levando-as consigo para o fim do balcão.

Se é a mesma da qual me lembro, pensou Clarissa, está vinte anos mais velha… Havia apenas uma outra freguesa, sentada ao lado do balcão, cotovelo apoiado, mão direita sem luva a cair desocupada; como uma figura num leque japonês, talvez desocupada demais, contudo capaz de suscitar a adoração de alguns homens, pensou Clarissa. Tristemente a senhora balançou a cabeça. As luvas tinham ficado muito grandes de novo. Ela se virou para o espelho. “Acima do pulso”, reclamou com a mulher grisalha; que olhou e concordou.

Elas esperaram; tiquetaqueava um relógio; Bond Street zumbia, embaciada, distante; a mulher se retirou carregando luvas. “Acima do pulso”, disse a freguesa, lamentosamente, elevando a voz. E ela teria de encomendar cadeiras, gelo, flores, tíquetes para a guarda dos casacos, pensava Clarissa. As pessoas que ela não queria, viriam; as outras, não. Mas ela ficaria na porta. Ali também vendiam meias – meias de seda. Conhece-se uma mulher por seus sapatos e luvas, costumava dizer tio Willian. E através do prateado tremulante das meias de seda penduradas ela olhou para a senhora que tinha os ombros tão altos, a mão caída, uma bolsa que ia deslizando e os olhos desocupados no chão. Seria intolerável se mulheres malvestidas fossem à festa dela! Poderia alguém gostar de Keats se ele tivesse usado mais meias vermelhas? Oh, enfim – ela se encostou no balcão e isto lhe veio à cabeça:

“Lembra-se que antes da guerra vocês tinham luvas com botões de pérola?”

“Luvas francesas, madame?”

“Sim, eram francesas”, disse Clarissa. A outra senhora se levantou muito triste e apanhou sua bolsa e olhou as luvas que estavam no balcão. Mas todas ficavam muito grandes – sempre grandes demais no pulso.

“Com botões de pérola”, disse a balconista que, ao abrir sobre o balcão as folhinhas de papel de seda, parecia mesmo bem mais velha.

Com botões de pérola, pensou Clarissa, tão simples – tão francês!

“Madame tem as mãos tão finas”, disse a balconista, puxando a luva com delicadeza e firmeza para a enfiar por cima dos anéis. E Clarissa olhou para o seu braço no espelho. A luva mal chegava ao cotovelo. Será que havia outras com um centímetro a mais? Mas que maçada seria incomodá-la por isso – talvez bem naquele dia do mês, pensou Clarissa, em que ficar em pé é uma agonia. “Oh, não se incomode”, ela disse. Mas as luvas foram compradas.

“Você não fica terrivelmente cansada”, disse em sua voz charmosa, “de estar sempre em pé? Quando tira suas férias?”

“Em setembro, madame, quando o movimento é menor.”

Quando nós estamos no campo, pensou Clarissa. Ou na temporada de caça. Mas para ela duas semanas em Brighton. Nalgum quarto de pensão sufocante. A dona esconde o açúcar. Nada seria mais fácil do que mandá-la para ficar com mrs. Lumley no campo (e já estava com isso bem na ponta da língua). Mas aí ela se lembrou de que em sua lua-de-mel Dick lhe mostrara a loucura que é dar impulsivamente. Muito mais importante, ele tinha dito, era estabelecer comércio com a China. Claro que estava certo. E ela podia perceber que aquela moça não iria gostar de receber coisas dadas. Ali ela estava em seu lugar. Como Dick, no dele. Seu negócio era vender luvas. Tinha seus próprios sofrimentos à parte “e agora nunca pode lamentar, nunca pode lamentar”, corriam-lhe pela cabeça as palavras “Do lento contágio das manchas do mundo”, pensou Clarissa, mantendo bem firme o braço, pois há momentos em que parece fútil demais (a luva foi retirada, deixando-lhe o braço salpicado de pó) – simplesmente não se pode mais, pensou Clarissa, acreditar em Deus.

De repente o rugir do trânsito; o brilho das meias de seda acentuou-se. Era uma freguesa que entrava.

“Luvas brancas”, disse ela, com algo em seu tom de voz que Clarissa reconhecia.

Antes, pensou Clarissa, era tão simples. O grasnar das gralhas descendo cada vez mais pelo ar. Ao morrer Sylvia, centenas de anos atrás, como ficaram lindas as cercas-vivas de teixos com os diamantes das teias orvalhadas, antes da primeira hora da igreja. Mas, quanto a isso de acreditar em Deus, se Dick fosse morrer amanhã – oh, não, ela deixaria que os filhos decidissem, mas quanto a ela, como lady Bexborough, que que diziam ter inaugurado o bazar de telegrama na mão – com Roden, seu favorito morto –, ela iria em frente. Mas por que, se ela não acreditava? Por causa dos outros, pensou, pegando a luva na mão. A moça, se ela não acreditasse, ficaria muito mais infeliz.

“Trinta xelins”, disse a mulher da loja. “Não, perdão, madame, trinta e cinco. As luvas francesas são mais caras.”

Pois ninguém vive para si, pensou Clarissa.

E a outra freguesa apanhou então uma luva, enfiou-a de um puxão e a luva não aguentou.

“Viu? Rasgou!”, exclamou ela.

“É defeito no couro”, apressou-se em dizer a mulher grisalha. “Às vezes é uma gota de ácido, sabe, no curtimento. Experimente este par, madame.”

“Mas pedir duas libras e dez é uma ladroeira horrorosa!”

Clarissa olhou para a madame; a madame olhou para Clarissa.

“Desde a guerra que as luvas já não são tão confiáveis”, disse a balconista, desculpando-se, para Clarissa.

Mas onde ela tinha visto a outra senhora? – idosa, com um flácido ressalto no queixo; com uma fita preta usada em óculos de ouro; sensual, inteligente, como um desenho de Sargent.7 Como reconhecer alguém pela voz, quando as pessoas tem o hábito, pensou Clarissa, de fazer os outros – “Está um pouquinho apertada”, ela disse – obedecerem? A mulher da loja foi lá dentro de novo. Clarissa continuava esperando. Não mais temas, repetia, brincando com o dedo no balcão. Não mais temas o calor do sol. Não mais temas, repetia. Havia no seu braço umas manchinhas marrons. E a moça se arrastava feito uma lesma. Tu, tu cumpriste com a tua missão terrena. Para que as coisas pudessem continuar como estão, milhares de rapazes tinham morrido. Enfim! Um centímetro acima do cotovelo; botões de pérola; cinco e um quatro. Meu caro e lento cocheiro, pensou Clarissa, você acha que eu posso ficar sentada aqui a manhã toda? E agora você vai levar vinte e cinco minutos para me dar meu troco!

Houve uma violenta explosão lá fora na rua. As mulheres da loja encolheram-se por trás dos baldes. Mas Clarissa, sentando-se bem ereta, sorriu para a outra senhora. “Miss Anstruther!”, exclamou.

O conto Mrs. Dalloway em Bond Street foi publicado originalmente em 1923, em uma coletânea de contos (The dial), com diversas/os autoras/es. Portanto, antes do romance Mrs. Dalloway, lançado em 1925.

Tradução gentilmente cedida por Leonardo Froés.