Extrato do ensaio “Extrema fidelidade”, de Hélène Cixous, publicado no livro A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos, de Clarice Lispector (Rio de Janeiro, 2017) *
As obras derradeiras são curtas e ardentes como o fogo que se eleva para as estrelas. Às vezes têm uma linha. São obras escritas com muita ternura. Obras de reconhecimento: pela vida, pela morte. Pois é também a partir da morte e graças à morte que se descobre o esplendor da vida. É a partir da morte que se lembram dos tesouros que a vida contém, com todos os seus infortúnios viventes e todos os seus gozos.
Há um texto que é como um salmo discreto, uma canção de graças à morte. Este texto se intitula A hora da estrela. Clarice Lispector escreveu-o quando ela já quase não era mais ninguém sobre a terra. Em seu lugar imenso, abria-se a grande noite. Uma estrela menor que uma aranha passeava ali. Essa coisa ínfima, vista de perto, mostrava-se uma criatura humana minúscula, que pesava talvez trinta quilos. Mas, vista a partir da morte, ou a partir das estrelas, era tão grande como qualquer coisa no mundo e tão importante como qualquer pessoa mais importante ou sem importância de nossa Terra.
Essa pessoa ínfima e quase imponderável se chama Macabéa: o livro de Macabéa é extremamente fino, tem a aparência de de um pequeno caderno. É um dos maiores livros do mundo.
Este livro foi escrito com uma mão cansada e apaixonada. Clarice já tinha de certa maneira deixado de ser uma autora, de ser uma escritora. É o último texto, aquele que vem depois. Depois de todo livro. Depois do tempo. Depois do eu. Pertence à eternidade, a esse tempo, a essa vida secreta e infinita de que somos fragmentos.
A hora da estrela conta a história de um minúsculo fragmento de vida humana. Conta fielmente: minusculamente, fragmentariamente.
Macabéa não é (senão) uma personagem de ficção. É um grão de poeira que entrou no olho do autor e provocou um mar de lágrimas. Este livro é o mar de lágrimas causado por Macabéa. É também um mar de questões imensas e humildes que não demandam respostas: demandam a vida. Este livro se indaga: o que é um autor? Quem pode ser digno de ser o autor de Macabéa?
Este “livro” nos murmura: os seres que vivem numa obra não têm direito ao autor de que têm necessidade?
Macabéa tem necessidade de um autor muito particular. É por amor a Macabéa que Clarice Lispector vai criar o autor necessário.
A hora da estrela, a última hora de Clarice Lispector, é um pequeno grande livro que ama e que não sabe sequer seu nome. Quero dizer: nem seu título. Títulos, há-os treze ou catorze. Como escolher um título? No mundo de Macabéa, escolher é um privilégio reservado aos ricos. Escolher é um martírio para a criatura que jamais teve nada. E que pois não quer nada, e quer tudo.
Então, A hora da estrela hesita. Um título equivale a outro. A hora da estrela intitula-se também: A culpa é minha – Ou _ A hora da estrela – Ou – Ela que se arranje – Ou – O direto ao grito quanto ao futuro – Ou – lamento de um blue – Ou – Ela não sabe gritar – Ou – Assovio ao vento escuro – Ou – Eu não posso fazer nada – Ou – Registro dos fatos antecedentes – Ou – História lacrimogênia de cordel – Ou – Saída discreta pela porta dos fundos.
Uma criatura equivale a outra.
Outra? O outro! Ah! o outro, aí está o nome do mistério, aí está o nome do Tu, o desejado para quem Clarice Lispector escreveu – todos esses livros. O outro por amar. O outro que põe o amor à prova: como amar o outro, o estranho, o desconhecido, o absolutamente não eu? O criminoso, a burguesa, o rato, a barata? – Como uma mulher pode amar um homem? ou outra mulher?
Ela, A hora da estrela, vibra inteira de tais mistérios.
*Gentilmente cedido pela editora Rocco