Entrevista com a tradutora Julia Romeu

Como descreveria o estilo de escrita de Virginia Woolf?

Eu precisaria pensar cem anos e ler mil livros antes de começar a responder essa pergunta. Arriscarei apenas que Virginia Woolf é única, incomparável. 

Na sua opinião, qual a razão desse ensaio da Virginia Woolf continuar sendo uma referência, quase um século depois de sua publicação?

Embora tenha havido progressos imensos nos direitos das mulheres desde que Um quarto só seufoi publicado, há quase um século, nós ainda continuamos enfrentando os problemas aos quais Woolf se refere no ensaio. As mulheres ainda têm menos liberdade, ainda se dedicam mais às tarefas domésticas do que os homens, ainda ganham menos pelo seu trabalho. O texto, além de ser lindo, continua sendo verdadeiro nos dias de hoje. Por isso, é uma leitura essencial para mulheres e homens.  

Quais são as diferenças no trabalho de tradução de obras de ficção e de não ficção?

Muitos ensaios de Woolf e, em particular, Um quarto só seu, misturam características de ficção e de não ficção. Ela declara logo no começo de Um quarto só seuque vai “usar todas as liberdades e licenças de romancista” para tratar de seu tema. Em geral, obras de não ficção usam uma linguagem mais direta, mais desprovida de adornos, e por isso o desafio de traduzi-las está mais na pesquisa de referências e na compreensão do contexto. Mas Um quarto só seu, além de carregado de informações, é também poético, de modo que a tradução exigiu muita pesquisa e também o exercício do lado escritora da tradutora. Talvez seja o texto mais difícil que eu já traduzi na vida.   

Você enxerga na literatura inglesa, sua área de especialização, herdeiras da Virginia Woolf? Quem seriam?

Acho que toda mulher que escreve hoje é herdeira de Virginia Woolf. Assim como ela homenageia as grandes escritoras que a precederam, acho que todas nós devemos algo a ela. E, como o mundo está menor e a cultura circula mais, acho que isso inclui as mulheres que escrevem em todas as línguas, não só em língua inglesa.

Você tem traduzido diversas obras de Jane Austen, objeto de um dos ensaios dessa edição e aponta o caráter feminista de suas obras, o que não tem sido reconhecido por grande parte de suas/seus leitoras/es. Você poderia dar alguns poucos exemplos desse traço feminista nas obras de Jane Austen?

Embora o termo feminismo ainda não houvesse sido cunhado na época de Jane Austen e muitos acadêmicos prefiram não usá-lo para se referir a ela, o que eu e diversos outras pesquisadoras e outros pesquisadores defendemos é que Austen aproveitou a estrutura dos romances da época para criticar a situação da mulher em sua sociedade. Se pensarmos no feminismo em sua essência, que é o conceito de que as mulheres são iguais aos homens, podemos considerar Jane Austen uma feminista. Sua crítica é sutil e irônica, mas está lá. Para dar um exemplo: se tirarmos o nosso foco das heroínas e prestarmos atenção nas personagens femininas secundárias, vemos quase que exclusivamente casamentos infelizes ou mulheres solteiras que sofrem com restrições sociais e econômicas. Não há um marido ideal disponível para todas. Como, aliás, está no começo de Mansfield Park: “Certamente há menos homens ricos no mundo quanto moças bonitas que os merecem.” E Jane Austen mostra muito claramente, ainda que com muito humor, que era injusta aquela sociedade em que a dependência de um homem, fosse marido ou pai, era a única opção das mulheres. Eu a considero feminista e a considero única, assim como Virginia Woolf. Por isso, o livro que estou escrevendo sobre Austen para a Bazar do Tempo, baseado nas minhas pesquisas de mestrado e doutorado, se chama Um lugar só dela: O feminismo em Jane Austen.  

Podemos dizer o mesmo das obras das irmãs Brontë — que há traços feministas na obra das três?

A Anne Brontë escreveu A senhora de Wildfell Hall, que eu também traduzi e é um romance revolucionário que mostra com a mais perfeita clareza o que acontecia quando o marido era mau caráter numa sociedade na qual a dependência da mulher era absoluta. Para mim, isso a torna inquestionavelmente feminista se usarmos o mesmo critério que eu uso para a Jane Austen. Também considero o feminismo da Charlotte Brontë muito evidente, principalmente em Jane Eyrenaquele trecho que Woolf cita na página 112 dessa edição de Um quarto só seu, em que ela declara que as mulheres anseiam pela mesma liberdade que os homens. Já a Emily Brontë, para mim, é indecifrável.   

Na sua opinião, por que essas autoras inglesas conseguem atravessar os séculos encantando leitoras e leitores? 

Pela qualidade do que elas escreveram. Nessa edição, eu selecionei ensaios de Virginia Woolf sobre quatro escritoras inglesas para acompanhar Um quarto só seu: Jane Austen, Charlotte Brontë, Emily Brontë e George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans). Escolhi esses ensaios porque essas quatro escritoras são muito presentes em Um quarto só seue eu considerei que seria interessante para o leitor saber um pouco mais do que Woolf escreveu sobre elas. Em estilos muito diferentes, elas criaram obras trágicas ou hilárias, mas sempre cativantes, que falam com verdade da alma humana. Como a alma humana, para o bem e para o mal, não muda nunca, os grandes escritores são eternos. 

Por que a escolha pelo título “Um quarto só seu”?

Considero que essa é a tradução mais fiel do título original, pois “room” é quarto ou cômodo, um espaço dentro da casa, não necessariamente a casa toda. Não precisa nem ter uma casa, um teto todo seu, basta um quarto para escrever em paz. 

Como tradutora, você enxerga alguma dificuldade no mercado em razão do gênero? Ou seja, podemos dizer que a maior parte das traduções ainda são feitas por homens?

Eu acho que no mercado editorial, em particular, as mulheres são muito presentes. Mas elas chegaram há menos tempo, então, é claro que se considerarmos a história da tradução no Brasil e no mundo, há muito mais homens do que mulheres. É preciso não descansar para continuar a equilibrar essa balança.