Laço familiares / Ligações conceituais: Notas africanas sobre epistemologias feministas

Oyèronké Oyèwúmi

Negociações familiares, se não são valores familiares, estão em toda parte. A retórica dos valores familiares tem sido útil para legitimar opressões assim como na montagem dos movimentos de oposição contra ela. Recentemente, várias/os estudiosas/os têm focado a atenção sobre o uso da família como tropo e ideologia na constituição de projetos políticos, nos discursos acadêmicos e na formulação de políticas, mesmo em áreas que parecem ser distantemente relacionadas a esta instituição social. O sociólogo britânico Paul Gilroy (1992) chama a atenção para a onipresença da retórica da família e as misóginas e exclusivistas maneiras dela ser implantada no “estadunidensecêntrico” discurso nacionalista negro. Em um recente artigo intitulado “É Tudo em Família”, Patrícia Hill Collins (1998) documenta o uso generalizado da metáfora da família e das leituras intermináveis que esta metáfora desencadeia quando empregada para analisar o discurso de raça, gênero, nação e as interconexões nos Estados Unidos. Em sua crítica perspicaz revisada de Anthony Appiah “In My Father’s House2(1992), a filósofa africana Nkiru Nzegwu (1996) nos convida a ler a formidável filosofia da cultura de Appiah como um manifesto sobre a família e nos concentrar sobre o caminho que ele privilegia no núcleo familiar europeu, mesmo quando se propõe a escrever sobre África.

Sem dúvida, o discurso sobre a família está em toda parte. Mas a questão que é frequentemente deixada de lado e que é implícita na crítica de Nzegwu a Appiah é, de que família, família de quem estamos falando? Nitidamente, é a família nuclear euro-estadunidense que é privilegiada, às custas de outras formas de família. Neste artigo meu objetivo é duplo: focar o feminismo – especificamente o feminismo branco – como um discurso particular a partir do qual se investiga o alcance e a profundidade da retórica da família e articular os arranjos familiares africanos, a fim de mostrar os limites dos universais. Sugiro que o discurso feminista está enraizado no núcleo familiar e que esta organização social constitui o próprio fundamento da teoria feminista e um veículo para a articulação de valores como a necessidade de acoplamento e da primazia da conjugalidade na vida familiar. Isto implica a difundida crença entre feministas, que um objetivo importante é subverter a instituição dominante masculina e a crença entre os detratores do feminismo que o feminismo é anti-familiar. Apesar do fato do feminismo ter se tornado global, é através do núcleo familiar Euro-Americano que muitas feministas pensam. Desta maneira, defendo que o conceito de controle dos estudos feministas – mulher – é na verdade a família, uma vez que funciona como um sinônimo de esposa. A mulher no centro do feminismo é uma esposa. Uma vez que os antecedentes deste assunto são conhecidos e sua “residência” é exposta, as limitações dos conceitos como gênero e outros termos nos estudos feministas torna-se mais inteligível.

A casa das moças

Em sua cuidadosa análise do “problema da exclusão” no feminismo, Elizabeth Spelman (1998) tenta analisar a discrepância entre Simone de Beauvoir (1952) em seus ricos conhecimentos teóricos sobre as múltiplas formas de opressão e sua prática de focalizar apenas as mulheres brancas de classe média, considerando a sua experiência universal. Spelman rapidamente nota que isso não é suficiente para dizer que Beauvoir estava apenas expondo sua própria raça e privilégios de classe, usando sua experiência para representar a das outras. Em vez disso, Spelman pergunta o que pode estar na linguagem, metodologia ou teoria empregadas por Beauvoir que lhe permita esconder de si mesma a afirmação de privilégios que ela tão intensamente viu em outras mulheres de sua própria posição (1998, 58). Concordo. Spelman explica a tensão como consequência da natureza política do feminismo: Beauvoir pode ter ignorado as diferenças entre as mulheres, porque era claro para ela que um forte argumento para a mudança política deve ser universal. Isso pode bem ser verdade, mas como uma explicação para um lapso teórico que continua a assolar muitos relatos feministas até hoje, assim, a interpretação de Spelman é inadequada.

Parece que o problema com o relato de Beauvoir é um problema que continua a assolar a teoria feminista, e é totalmente explicada pelo reconhecimento de que a mulher na teoria feminista é uma esposa – a metade subordinada de um casal em uma família nuclear – que vive em um lar familiar. Beauvoir e outras teorizam como se o mundo fosse branco, de núcleo familiar e de classe média. Não é de se surpreender que a mulher que emerge do feminismo euro-americano é definida como uma esposa. De acordo com Miriam Johnson, “a relação solidária adulta tende a ser a base no relacionamento conjugal ocidental e, como tal, faz com que a própria definição de mulher se torne a de esposa” (1988, 40). Porque raça e classe não são geralmente variáveis dentro de uma família, o feminismo branco que está preso à família nuclear não reconhece raça ou diferença de classe. Metodologicamente, a unidade de análise é família nuclear, que interpreta as mulheres (brancas de classe-média) como esposas, porque esta é a única maneira que elas aparecem dentro da instituição. A extensão do universo feminista que aparece como tema, então, é a casa.

O conceito de “solipsismo branco” – a tendência de pensar, imaginar, e falar como se a brancura descrevesse o mundo” (Spelman 1988, 116) – tem sido oferecido como uma explicação para a falta de atenção à raça em muitas pesquisas feministas. No entanto, o problema também é uma percepção estruturada pela incapacidade de ver mesmo a casa como um lugar compelido e limitado, um entre muitos pontos a partir do qual apreciamos o mundo. A tendência das feministas brancas, como Beauvoir e Nancy Chodorow (1978), que universalizam a partir de suas próprias experiências, não é tanto uma visão restrita e sim é uma visão truncada – um resultado do fato de que o mundo não está disponível para a leitura de dentro de sua casa, não obstante. A mulher no coração da teoria feminista, a esposa, nunca fica fora do domicílio conceitual. Inconscientemente, como um caracol, ela carrega a casa, juntamente com a noção de um casal branco privilegiado, com ela e seus filhos. O problema não é que o feminismo comece com a família, mas, ao contrário disso, ele nunca a deixa e nunca sai de casa.

A partir da lógica da família nuclear segue uma oposição binária que mapeia como privado o mundo da mulher, em contraste com o mundo muito público do homem (não “esposo”, pois o homem não é definido pela família). Sua presença define o privado; sua ausência é a chave para a sua definição como privado. Esta observação explica outro problema grave nos estudos feministas, ou seja, o problema da ausência masculina como característica da convenção dos estudos em usar o termo gênero como sinônimo de mulher. A ausência de homens da estrutura espacial da família nuclear é reproduzida quando a presença dos homens não está registrada nos discursos feministas. A mulher do feminismo é especificamente uma esposa, pois se ela fosse uma mulher genérica, ela teria que ser construída em relação a alguma outra coisa, toda vez que ela é mencionada. Como esposa, no entanto, a sua posição e localização são sempre já configuradas e entendidas. Assim, o candidato a outro gênero pode ser dispensado.

O arranjo espacial da família nuclear familiar como o espaço privado em que apenas a mulher está em seus elementos, não permite o gênero como uma dualidade. Não é à toa que mulher e gênero são praticamente termos sinônimos em muitos estudos que pretendem ser sobre relações de gênero (que na verdade deveriam incluir homens e mulheres). –A família nuclear de muitos estudos feministas produz um cálculo falho de gênero, a categoria que reivindica seu resultado como zero. Ao invés de interpretar a família nuclear branca como uma forma culturalmente específica, cujas características raciais e de classe são essenciais para a compreensão da configuração de gênero que abriga, muitos estudos feministas continuam a reproduzir suas distorções através do espaço e do tempo.

Tornar-se global

A ideia de que a mulher no feminismo é uma esposa não é nova. Inúmeros pesquisadores sobre gênero nas sociedades africanas têm mostrado que as antropólogas feministas da África tendem a se concentrar em categorias sociais que elas percebem ser definidas pelos homens, equivalente à categoria de esposa no Ocidente. O que é novo é a identificação de seu ponto de origem no Ocidente. Em meu livro The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses (Oyèwúmi, 1997), defendo que em muitas pesquisas antropológicas feministas, o termo mulher é usado como um sinônimo para esposa tanto conceitualmente e linguisticamente, e marido como um sinônimo para o homem, como demonstrado no seguinte comentário de mulheres iorubás: “Em certas sociedades africanas, como a iorubá, as mulheres podem controlar uma boa parte do fornecimento alimentar, acumular dinheiro e comercializar em mercados distantes e importantes; ainda quando se aproximarem de seus maridos, as esposas devem fingir ignorância e obediência ajoelhando-se para servir aos homens quando eles se sentam” (Rosaldo 1974, 19 – 20). O problema é que oko, a categoria iorubá apresentada como marido em Inglês, não é um gênero específico, que engloba ambos os machos e fêmeas. As mulheres também assumem o papel de marido; assim alguns dos “maridos”, sobre os quais alude a citação são mulheres. Há pouca compreensão de que os arranjos sociais africanos, familiares e de outras formas, derivam de uma base conceitual diferente.

Em grande parte da África, “esposa” é apenas uma palavra de seis letras. Embora não seja um termo comum em si, iyawo (como um exemplo) é essencialmente uma categoria subordinada. Consequentemente, muitas mulheres tradicionalmente não têm privilegiado isso que as identificam. (Embora com a imposição colonial da prática de mulheres casadas serem rotuladas com o nome de seus parceiros conjugais, ao estilo europeu, este valor africano está sob sério ataque). Ser esposa tende a funcionar mais como um papel, que como uma identidade profundamente sentida, geralmente implantada, estrategicamente. Em toda a África, a categoria geralmente traduzida como esposa não é o gênero específico, mas simboliza relações de subordinação entre quaisquer duas pessoas. Consequentemente, no esquema conceitual africano é difícil confundir mulher e esposa e articulá-las como uma categoria. Apesar de esposas em muitas sociedades africanas ter tradicionalmente sido considerado como funcional e necessário, isto é ao mesmo tempo visto como uma fase de transição, no caminho para a maternidade. Mãe é preferida e apreciada por muitas mulheres africanas como auto-identificação.

Além disso, o princípio predominante organizador das famílias africanas tem sido consanguíneo e não conjugal: relações de sangue constituem o núcleo da família. Muitos irmãos e irmãs vivem juntos, juntamente com as esposas dos irmãos e os filhos de todos. Neste tipo de sistema familiar, o parentesco é forjado principalmente na base das relações de nascimento, não em laços matrimoniais. Normativamente, em seguida, as esposas não são consideradas membros da organização social chamada “família”. A família africana não existe como uma entidade espacialmente delimitada coincidente com a casa, desde as esposas como um grupo pertencente às suas famílias de nascimento, embora elas não necessariamente residam com os seus grupos de parentesco. Há outros arranjos familiares africanos que complicam ainda mais a questão. Por exemplo, no sistema familiar akan, em Gana, as famílias são tradicionalmente matrilineares e matrilocais.

Em todos os arranjos familiares africanos, o laço mais importante está dentro do fluxo da família da mãe, quaisquer que sejam as normas de residência no casamento. Estes laços ligam a mãe aos/as filho/as e conectam todos os filhos da mesma mãe, em vínculos que são concebidos como naturais e inquebráveis. Não é de se surpreender, então, que a mais importante e duradoura identidade e nome que as mulheres africanas reivindicam para si é a “mãe”. No entanto, a maternidade não é construída em conjunto com a paternidade. A ideia de que as mães são poderosas é muito mais uma característica definidora da instituição e seu lugar na sociedade.

Construções africanas da maternidade são diferentes em aspectos significativos do “núcleo materno” que tem sido articulado pelas teóricas feministas tais como Chodorow (1978). Em seu relato, não há nenhum significado independente da maternidade fora da identidade primária e sexualizada da mãe como a esposa do patriarca. As relações sexuais da mãe com seu marido são privilegiadas sobre as relações com seus filhos; ela não é tanto uma mulher como ela é uma esposa. É apenas no contexto de uma família nuclear isolada que os argumentos de Chodorow sobre a identificação de gênero da criança com a mãe faz sentido. Este é o efeito do pressuposto de que a mãe é exibida como uma esposa (sendo relações de gênero), até mesmo para a criança. Em uma situação como o arranjo familiar africano, onde há muitas mães, muitos pais, muitos “maridos” de ambos os sexos, é impossível apresentar a relação entre mãe e filho nesses termos.

Os cinco séculos de longo processo de globalização turvaram todo tipo de fronteiras em todo o globo. Na virada do milênio, portanto, uma das questões mais importantes para o feminismo é a fragmentação da categoria mulher – o sujeito do feminismo. Isso geralmente é entendido como um desafio apresentado por balanços pós-modernistas da (i)realidade social. Mas, rapidamente, aponto que os desafios históricos para a compreensão racial e cultural monolítica do sujeito pós-moderno são anteriores ao feminismo. As feministas negras americanas são pioneiras notáveis a este respeito. A ansiedade feminista sobre o desaparecimento da mulher é desnecessária, ela nunca existiu como um sujeito unificado, em primeiro lugar. Além disso, se, como já afirmei aqui, tomada como certa, a identidade da mulher invocada em muitos estudos feministas é o da “esposa nuclear”, seu desaparecimento pode não ser lamentável. Pelo contrário, sua morte pode limpar o caminho para as mulheres serem o que quiserem ser.

1 “Family bonds/Conceptual Binds: African notes on Feminist Epistemologies”. Signs, Vol. 25, No. 4, Feminisms at a Millennium (Summer, 2000), pp. 1093-1098. Tradução de Aline Matos da Rocha. Agradecemos à plataforma Filosofia Africana.

2 Título em português: Na Casa de Meu Pai: a África na filosofia da cultura.

Referências
APPIAH, Kwame Anthony. 1992. In My Father’s House: Africa in the Philosophy of Culture. New York: Oxford University Press.
BEAUVOIR, Simone de. 1952. The Second Sex. New York: Vintage.
CHODOROW, Nancy. 1978. The Reproduction of Mothering: Psychoanalysis and the Sociology of Gender. Berkeley: University of California Press.
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GILROY, Paul. 1992. “It’s a Family Affair”. In Black Popular Culture, a project by Michele Wallace, ed. Gina Dent, 303 – 16. Seattle: Bay.
JOHNSON, Miriam. 1988. Strong Mothers, Weak Wives: The Search for Gender Equality. Berkeley: University of California Press.
NZEGWU, Nkiru. 1996. “Questions of Identity and Inheritance: A Critical Review of Kwame Anthony Appiah’s In My Father’s House. Hypatia 11 (1): 175 –201.
OYÈWÚMI, Oyèronké. 1997. The Invetion of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press.
ROSALDO, Micelle Zimabalist, and Louise Lamphere, eds. 1974. Woman, Culture, and Society. Stanford, Calif.: Stanford University Press.
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