Antropóloga com doutorado pela Queen’s University (Belfast, Irlanda), teórica e militante do feminismo e uma das intelectuais mais influentes da América Latina, a argentina Rita Segato é autora de obras fundamentais como “Las estruturas elementares de la violencia”, “La guerra contra las mujeres” e “Contra-pedagogías de la crueldade”, textos que iluminam o caminho daqueles que estão dispostos a se aventurar em um pensamento audaz. Nesta entrevista concedida em meio à pandemia, ao jornal La Nación, Rita Segato apresenta reflexões mobilizadoras no campo das ideias, dos ativismos e dos afetos.
Como está passando por esse momento de confinamento?
Para ser muito sincera, não muda muito a maneira como vivo, porque minha vida é muito na palavra e a palavra pode circular de forma virtual. Nos pedem para não confundir a distância física com a distância social, nos dizem que a distância física é uma coisa e que a distância social é outra. Bem, há um grande equívoco nisto: pensar que a distância física não é uma distância social. O que acontece com os povos, com as pessoas cuja conexão com os outros não é verbal? Refiro-me aos povos indígenas, por exemplo, para os quais a copresença, às vezes em total silêncio, é comunicação. Acredito que é uma dimensão que nos falta. Algo interessantíssimo que está acontecendo com a quarentena é que começamos a sentir a necessidade da materialidade do corpo do outro, que não perceberíamos necessariamente como uma comunicação. Algumas e alguns de nós somos verbais, mas há muita gente para quem a comunicação não verbal é essencial; e talvez para nós também a comunicação não verbal seja essencial, mas a velamos, a obstruímos. Eliminamos a importância do corpo.
A história da humanidade é atravessada por pestes, pragas e pandemias. Qual a diferença das anteriores?
Acredito que isto chega em um momento em que certos grupos de interesse econômico pensavam que tinham a história sob seu controle, e que o controle era possível. Em um dos meus textos, escrito há vários anos, disse que a única utopia vigente é a utopia da liberdade da história, da absoluta imprevisibilidade e do caráter incontrolável do vento da história.
O caráter indomável da história e da natureza…
Sim, a natureza é indomável e a história também. A humanidade inteira, jornalistas, sociólogos, cientistas políticos, todo o mundo olhou por muitos anos para o Muro de Berlim mas ninguém jamais foi capaz de predizer que dia e a que horas ele iria desmoronar. E isso é impressionante. Os poderoros pensaram sempre que poderiam controlar a história, mas ela dá suas rasteiras. E esse vírus nos chega em um momento de extrema pretensão das estratégias de controle. O poder sempre fez essa jogada: nos fazer pensar que vivemos em uma cápsula fechada e apropriada. Mas dizer que a cápsula se quebrou e está aberta é o mais revolucionário que pode existir e é muito importante para todos aqueles que glorificam a tecnologia de controle tentando manter as pessoas dentro dessa cápsula. Tudo isso é quebrado por uma pequena criatura. E inevitavelmente outras virão. Mas há uma segunda pergunta que é diferente.
Qual?
Nas epidemias anteriores se via as pessoas morrerem. A morte era vista, e hoje ela é oculta. O máximo que vemos são as quantidades de caixões ou como uma grande escavadeira está abrindo buracos para colocar todos os caixões que vão chegar, por exemplo, em Guayaquill ou em Manaus, mas não estamos vendo os corpos atravessarem este trânsito, que é a passagem da vida para a morte. Os corpos estão isolados, ocultos aos olhos dos demais. Essa é uma novidade dessa peste.
Esta pandemia atravessa os rituais e os momentos mais importantes da vida: mães que parem sozinhas, pessoas que morrem isoladas, em solidão absoluta; familiares que não podem acompanhar esse trânsito. Há uma dimensão indizivelmente trágica nessa despedida solitária.
Totalmente, e tem a ver com o que dizia antes sobre o terror de pensar que o social é a palavra e a bidimensionalidade da imagem, se nos darmos conta de que a proximidade corporal é uma parte fundamental do social, na vida e na morte, na doença e na saúde. Os rituais não são verbais, são rituais físicos, dotados de materialidade. Toda a fiscalidade da existência está se mostrado agora por sua falta, sua ausência. Sentimos uma grande carência dessa materialidade que permanece sem inscrição, sem registro.
Você acredita que a ideia que temos da morte mudou, que há uma consciência de finitude, uma ideia mais democrática da morte?
Por um lado, ela se torna mais democrática, sim, porque todos os corpos se mostraram igualmente vulneráveis. Mas aí aparece, em letras garrafais, outra vulnerabilidade, que é a vulnerabilidade da fome. Fecharam-se os mundos de quem tem algum dinheiro no banco, ou um pagamento periódico do Estado ou de um recebimento de aluguel. Então há um mundo de separação entre quem tem renda garantida para comer e quem não tem. Essa pandemia nos obriga a refletir sobre um outro grande tema que estava no ponto cego da visibilidade: a importância de algum grau de proteção das economias locais e da economia nacional. É preciso existir uma parcela da economia reservada do circuito global e é necessário começar a pensar em como garantir um refúgio, um bloqueio de soberania econômica e soberania alimentar resguardado das vicissitudes da escala global. Nesse sentido, penso que a economia deve ser anfíbia, com uma visão para fora e outra para dentro, com um pé no mercado global e um olho protetor das economias e mercadorias locais e regionais. O grande aspecto democrático da pandemia é sua grande lição para aqueles que creem que é possível controlar o destino. Ela revela a grandeza da liberdade no sentido maior da liberdade, que é a incerteza. O outro grande tema que emerge é a ternura.
A ternura?
Sim, Olga Tokarczuk, prêmio Nobel de Literatura de 2018, fala muito da importância da ternura. O mundo vai mudar quanto tivermos acesso a outras formas de felicidade e realização; em outras palavras, quando desejarmos outras coisas. O prazer de dar e receber ternura é um dos grandes prazeres. Mas depende do tempo que se libere do “rigor produtivista” que nos assola e se converte em virtude, em valor moral com sua contraparte indispensável a partir do processo industrialização: o ócio como mercadoria, comprável e vendável. Isso deslocou outros prazeres como a ternura e a amizade, próprios de uma ordem baseada na reciprocidade. Creio que houve um momento, nos anos 1960, que se tentou instalar algo dessa experiência, mas a mercantilização da vida mesma, que não é outra coisa que a coisificação da vida mesma, acabou se impondo. Agora, pessoas, vizinhos nos quais alguém poderia não ter jamais reparado, se fazem presentes e se destacam pela forma em que nos ajuda. Entraram na nossa vida e sentimos que gostamos deles.
Trata-se de uma forma de proximidade apesar da distância física?
Sim. Sentimos o imediatismo do corpo do outro de uma maneira distinta. Ou seja, há uma afetividade que surge e é por aí que se muda o mundo. É muito difícil mudar o mundo a partir de uma lei, de uma ação do Estado: o mundo muda na transformação das tramas, do tecido, como se fôssemos babosas ou pequenas aranhas tecendo a rede de relações ao nosso redor. E essa pandemia está transformando as maneiras em que tecemos nosso redor imediato. A chave da transformação possível, embora ainda não provável, a partir da pandemia e sua quarentena, é que apareçam outros desejos no horizonte, que passemos a ansiar outras coisas. Se o que desejamos muda, o mundo muda.
Algumas pessoas acreditam que essa situação extraordinária aprofunda questões que estavam presentes e outros creem que sairemos melhores e transformados. Pareceria que você se encontra mais no segundo grupo.
Eu também estou pensando nisso. Há aí uma ideia-chave que é a noção de felicidade, de prazer. E vai depender muito de onde estejamos colocando nosso gozo, nossa satisfação e nosso prazer, nossa realização, nossas formas de alegria. Estou falando de onde conseguimos encontrar o humor, o riso, um bom momento, em meio a uma situação como esta. Resta ver se, nas atitudes de individualismo egoísta, as pessoas poderão alcançar a experiência da alegria, da ternura. O caminho que vai vencer é aquele onde encontrarmos a ternura e o prazer da convivência que nos conforta. Esse será o mundo vencedor. Será onde encontrarmos o sorriso cúmplice na pequena felicidade.
Você escreveu sobre como esta pandemia deixa exposto ao mundo desenvolvido a impossibilidade do cuidado massivo de seus habitantes, mas também nos desmascara em termos pessoais: caem os véus, revela-se quem somos e qual é o sentido da nossa existência.
Totalmente. A noção de pequena felicidade me acompanha desde que sou muito pequena. Em um momento de minha vida me perguntei: o que procuro? A grande felicidade ou a pequena felicidade? E entendi que buscava a pequena felicidade, e essa pequena felicidade que procuro para mim mesma, é o que se apresenta agora como a única saída. Então, os grandes projetos de poder, de influência, de prestígio, perdem para a oportunidade disso que, acredito, a pandemia nos permite, que é a pequena felicidade. Tínhamos esquecido desse projeto da pequena felicidade. Eu poderia ter sido, por exemplo, uma poeta, porque escrevia poesia. E me dei conta que queria a pequena felicidade. É outra poesia, é uma poesia da vida, não dos grandes textos.
Nestes tempos de confinamento e restrições extremas aumentaram muito as denúncias de violência de gênero. O que você poderia dizer sobre essa situação aterradora?
Eu poderia dizer tudo isso que está nos meus textos anteriores, que na base da violência masculina se encontra a frustração e que o sujeito masculino reage violentamente quando seus desejos e intenções são frustrados. A frustração de não poder sair, o confinamento sob olhares vigilantes dentro de casa, não poder ter certas liberdades, ruminar durante horas alguma traição, alguma infidelidade ou algum abandono, pode detonar a violência. Tudo isso agora é ampliado. Mas o mais importante que posso dizer é que estamos frente a uma situação ainda não vivida anteriormente. Todas as formas de violência e crime diminuíram e a de gênero aumentou. Poderíamos pensar que compreendemos, mas precisamos ser humildes e exercitar uma curiosidade enorme porque estamos diante do desconhecido e isso nos obriga a investigar o que está acontecendo, em primeiro lugar, com a masculinidade nesta situação de confinamento, e o que aconteceu, também, com a feminilidade. Como esta relação de gênero se comporta nesse novo cenário? É um momento que necessita de estudo e observação. Apenas dessa forma haverá eficácia na ação.
Alguns agressores sexuais foram liberados para cumprir pena em prisão domiciliar; o que cria uma situação de ameaça às vítimas. É impossível não lhe perguntar sobre esta situação.
Acho nosso olhar sobre a questão carcerária muito estreito; especialmente o olhar dos operadores do direito, o olhar do que, por falta de um vocabulário mais preciso, chamamos “justiça”. Escrevi criticamente sobre este sistema carcerário, sobre a “fé carcerária” que advogamos. Sou adepta do garantismo jurídico quando se trata de presos vulneráveis, os pobres, os negros, e aderi ao antipunitivismo por ter trabalhado em prisões com estudantes por muito tempo. Mas também sou veementemente crítica do garantismo quando se trata de crimes contra as mulheres e a população LGBTTTIQ+. Porque nesse caso, o agressor encarna a posição de poder e a vítima é que necessita de garantias. Nesses casos não pode haver indulgência. O papel mais importante de uma sentença é ser pedagógico, e ainda estamos ensinando à sociedade que estuprar, bater ou matar uma mulher é crime. E a sociedade, infelizmente, ao que parece, ainda precisa aprender de fato.
Você diz que “o feminismo não pode e não deve construir os homens como inimigos naturais”. O feminismo é um movimento diverso, com muitos posicionamentos e não há uma maneira única de ser feminista. Como descreveria a sua?
Tenho uma definição própria do fascismo, minha, pessoal, operativa. E minha definição do fascismo é que, mais que uma política, trata-se de uma estratégia e sempre uma estratégia do inimigo: há que desenhar um inimigo comum para produzir uma aliança daqueles que, de outra forma, não estariam do mesmo lado. O inimigo comum é o que distingue as estratégias fascistas. Então, quando o feminismo se propõe e se define como um movimento contra os homens, tendo eles como inimigos, corre o risco de se transformar em um movimento que tende ao fascismo. O inimigo do feminismo é o patriarcado, onde ele se manifesta, não os homens. O feminismo, os feminismos no plural, é algo muito maior e mais luminoso do que uma política da inimizade. Como ultimamente tenho tido um pouco mais de tempo para ruminar minhas coisas, tenho pensado mais no que consiste a minha militância.
E como a definiria?
Minha militância dentro do feminismo é uma política da amizade, de uma trama íntima com as pessoas, de uma construção da proximidade. Tenho uma relação muito bonita com muitas mulheres. A maioria delas é mais jovem que eu. É uma amizade dotada de politicidade. A politicidade em chave feminista, a politicidade de um espaço doméstico ampliado. Isso é política também. Meu feminismo é um feminismo da amizade, um feminismo dos vínculos que vamos criando ao longo da vida; é um feminismo do dia a dia, do cotidiano. O mundo que imaginamos como um mundo agradável é um mundo sem hegemonia, sem que nenhum dos mundos e das propostas sejam dominantes sobre as outras, é um mundo solto, radicalmente plural, sem os imperativos das vanguardas, um lugar onde diferentes formas de felicidade, realização, satisfação e bem-estar possas existir sem agredir-se mutuamente.
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Rita Segato nasceu em Buenos Aires, em 1951. É antropóloga, professora emérita da Universidade de Brasília e especialista em estudos de gênero. Atuou como especialista em diversas pesquisas e ações internacionais, como o histórico julgamento na Guatemala, no qual membros do exército foram pela primeira vez julgados e condenados por escravidão sexual e doméstica contra mulheres maias da etnia q’eqchi. É autora de “Santos e daimones: politeismo afrobrasileiro e a tradição arquetipal” (1995), “Las estruturas elementales de la violencia”, “La guerra contra las mujeres”, entre outros livros. Atualmente é responsável pela Cátedra Rita Segato de Pensamento Incômodo da UNSAM (Universidade Nacional de San Martín), Argentina.
Entrevista concedida à Astrid Pikielny para o jornal La Nación, caderno “Opinión”, em 2 de maio de 2020. Tradução de Catarina Lins.