Entrevista sobre “Elos líricos”, de Marina Tsvetáieva

Com Paula Vaz de Almeida, organizadora e tradutora da edição

Ao escolher os poemas e os ensaios que integram esta coletânea, você pretendeu fazer um inventário de poetas que influenciaram a escrita de Marina Tsvetáieva ou também poetas com quem ela mantém relação de admiração e afeto?

A ideia dos “elos líricos”, expressão que escolhi para dar título à coletânea, contém essas duas interpretações. Penso que, para Marina Tsvetáieva, a influência artística não se dá sem certa admiração e afeto. As e os poetas a quem se dedicam os ciclos de poemas e os ensaios que compõem o livro foram, em menor ou maior medida, influências fundamentais para seu fazer poético, mas também eram pessoas que ela admirava. Para ficar em dois exemplos: Boris Pasternak, era um amigo próximo significativo na vida da poeta, eles trocaram cartas por mais de uma década, de modo que a influência, mútua, foi se construindo à medida que a história entre eles se desenrolava; no caso de Púchkin, no ciclo que compõe o livro, sobressai o gênio perseguido pelo poder, mas numa outra obra, Meu Púchkin, há a reconstrução das primeiras experiências, as experiências infantis com o poeta, em uma abordagem bastante afetiva.

Como é a recepção de Tsvetáieva hoje na Rússia e no Ocidente? Este ano, além da Bazar do Tempo, outras três editoras anunciaram a publicação da obra da autora no Brasil. A que você atribui essa, digamos, descoberta ou redescoberta da poeta, que, vale dizer, já tem outras obras publicadas aqui, como Vivendo sob o fogo e Indícios flutuantes?

É interessante que a recepção das obras de Marina Tsvetáieva, tanto na Rússia quanto no Ocidente e aqui no Brasil, não apenas hoje, mas historicamente, está de certo modo ligada às viragens políticas dos períodos e foi decididamente determinada pela atuação de sua filha, Ariadna Efron. Emigrada em 1922, viveu a maior parte de seu exílio na França, com o companheiro, Serguei Efron, a filha, Ariadna, e o filho, Gueórgui, retornando à Rússia em 1939, onde cerca de dois anos mais tarde, em 1941, cometeria suicídio. O que se segue a isto é um total silêncio: no Ocidente e na Rússia, nos anos 1940 até meados dos 50, era como se nunca tivesse existido uma Marina Tsvetáieva sobre a face da terra.

Ariadna havia retornado antes dos pais, em 1935, seduzida pela propaganda que se fazia junto aos filhos da emigração, mas logo será presa e condenada a trabalhos forçadas nos Campos do Grande Norte. Quando é liberada, em 1954, dedica-se a recolher, reunir, organizar e tentar publicar os escritos da mãe. Ao mesmo tempo, no Ocidente, como parte da propaganda antissoviética, há um esforço, em especial nos EUA, de publicar obras russas em russo. Como resultado, temos o que poderíamos chamar de “primeira onda” dessa recepção das obras de Marina Tsvetáieva. As décadas de 1960, 70 e 80 são marcadas por uma série de importantes estudos na Europa Ocidental e na América, pari passu ao interesse das editoras. No Brasil, o pioneirismo é de Aurora Fornoni Bernardini que, atenta a esse movimento, dedica ao estudo da poesia de Tsvetáieva sua tese de livre docência, defendida na USP em 1976. Trata-se de uma geração à qual devemos muito. Além da brasileira Bernardini, Simon Karlinsky nos EUA, Veronique Lossky, na França, e Irma Kudrova, Anna Saakiants e Lev Mnukhin na Rússia possuem trabalhos fundamentais, produzidos em uma época em que inúmeras dificuldades, inimagináveis hoje para nós, estavam colocadas. Não só a óbvia facilidade que nos traz a Internet e a digitalização de materiais importantes, com o que não podiam contar, essas pesquisadoras e pesquisadores empreenderam suas investigações num contexto particularmente difícil, de Guerra Fria, no mundo; e em cada país, dificuldades e deficiências particulares, sempre com algum grau de censura; no Brasil, por exemplo, havia a ditadura empresarial-militar. De todo modo, não fossem esses esforços talvez o nome Marina Tsvetáieva não tivesse voltado a ser pronunciado nos “dois lados do mundo”. Mas há outro fator: uma decisão de Ariadna Efron – polêmica, porém, a meu ver, acertada – representou um dificultador especial no que diz respeito ao acesso e, portanto, à recepção das suas obras. Pouco antes de morrer, em 1975, Ariadna selou todo o material reunido ao longo de cerca de 20 anos de trabalho obstinado e encerrou no Arquivo Nacional de Literatura e Artes, com ordem de que só fossem abertos nos anos 2000.

E assim se fez. Quando, finalmente, ocorre a abertura dos arquivos, tem-se início uma “nova onda” e o nome Marina Tsvetáieva começa a pipocar em toda parte. Se quisermos estabelecer um marco, este seria um congresso ocorrido em Paris, dedicado a avaliar o que o acesso a esse material representaria. Isto, ao lado do fato de Tsvetáieva ter vivido na França e produzido em francês, explica a recepção da poeta nesse país em particular e na Europa em geral. Na Rússia, ela vinha sendo publicada desde os 1990, no âmbito de um contexto maior de renascimentos e descobertas, em que as obras de importantes escritoras e escritores de inícios do século XX foram não apenas revisitadas, mas publicadas pela primeira vez. Esse movimento de (re)descoberta de uma geração maldita – assassinados, exilados, emigrados, encerrados em campos de trabalhos forçados, encarcerados dentro de si mesmos, banidos do partido e da pátria ou que colocaram fim à própria vida – representou o que alguns chamam de “segunda onda da Idade de Prata”. Com a abertura dos arquivos, Tsvetáieva foi plenamente reabilitada e hoje temos não só diversas edições de suas obras, como também ela é bastante estudada e a casa em que morou foi transformada em um belo museu.

Na Europa e nas Américas, vimos crescer sua presença nos mundos acadêmico e editorial. Papel fundamental nessa “nova onda” penso que podemos atribuir à dedicação de Tzvetan Todorov, que não apenas refletiu sobre a práxis de Tsvetáieva em ensaios e artigos fundamentais, mas coordenou, junto de Verónique Lossky, um volumoso trabalho de organização e tradução ao francês das obras de Marina Tsvetáieva, publicadas em 2009-2011, pelas Éditions du Seuil. Também merece destaque seu Vivendo sob o fogo, publicado no Brasil pela Martins Fontes, com tradução do russo e do francês de Aurora Bernardini, em que ele reconstrói a biografia, ou a autobiografia, da poeta, a partir de diários, cartas e cadernos de estudos.

Agora, veja que meu interesse por ela começou ainda na graduação, nos anos 2000; em 2004, comecei o mestrado, concluído em 2008, ou seja, também fui influenciada por essa “onda” provocada pela abertura dos arquivos. Em 2006, sai o livro Indícios flutuantes, com tradução e organização de Aurora Bernardini, originado daquela tese de livre docência dos anos 70, e em 2008 o Vivendo sob o fogo. Ela começa a ser cada vez mais estudada nas universidades brasileiras, e não só na USP. Se observarmos o atual cenário dos estudos e das publicações de literatura russa no Brasil, não é difícil concluir que seu lugar é de destaque. Penso que concorre também para isto o crescimento do interesse na literatura feita por mulheres em nosso país, com o que o trabalho feito pela Bazar, no Clube F., mas não só nele, sem dúvida, colabora. Acredito, portanto, que essas publicações são ainda resultantes da abertura dos arquivos e do trabalho feito nas universidades. Além dos livros citados, há pela Kalinka O diabo e pela Âyiné O poeta e o tempo, ambos trabalhos em prosa traduzidos por Aurora Bernardini.

Para terminar, gostaria apenas de fazer uma observação que considero importante sobre a recepção das obras de Marina Tsvetáieva, de um ponto de vista mais histórico, digamos assim: num primeiro momento, o pouco que havia de publicação, as dificuldades suscitadas pelo contexto da Guerra Fria e aquelas impostas pela filha precavida faziam com que as pesquisadoras e os pesquisadores tivessem que recorrer à poesia de Tsvetáieva na tentativa de reconstruir sua biografia; num segundo momento, conforme se estudava, discutia-se, e novos materiais conheciam a luz do dia, essa correlação entre a vida da poeta e os temas de sua poesia começou a ser questionada; já hoje, com uma considerável quantidade de material disponível e aumentando, mais trabalhos de crítica, análise e teoria literárias começam a surgir, bem como um interesse pelas outras formas, como a prosa, a correspondência, os diários e o teatro. É algo impressionante, há não tanto tempo assim, quando fiz as pesquisas em nível de mestrado e doutorado, o cenário era de escassez de material de pesquisa, de fonte primária etc. Além disso, o conhecimento de alguns meandros da história soviética, como, por exemplo, a rede de espionagem que atuava como braços do stalinismo na Europa, da qual Serguei Efron era um dos cabeças, até pouco tempo era inacessível. E isso tudo tem ajudado a jogar luz nas lacunas da biografia de Marina Tsvetáieva, tais como, seu estranho retorno à Rússia soviética e seu suicídio, fatos cujas interpretações, na minha opinião, ainda padecem de alguns equívocos.

No texto de apresentação do livro, você diz que a leitura poderá proporcionar um primeiro contato com a poesia russa. Há duas poetas na coletânea, Anna Akhmátova e Sofia Parnok, que praticamente não são publicadas no Brasil. Você acha que o sucesso de Tsvetáieva pode desencadear a publicação de outras autoras russas por aqui, poetas e/ou prosadoras?

Espero que sim! E seria maravilhoso se essa justiça fosse feita. Da Akhmátova ainda temos publicações, mas dos poemas da Parnok não há. Denise Sales, professora da UFRGS, tem chamado atenção para esse fato, ou seja, de que a intensa, rica e variada produção das mulheres russas e soviéticas no campo da literatura ainda não encontrou, ou conquistou, seu lugar no meio editorial. Eu diria que na academia é um pouco diferente. Então, espero, sinceramente, que esta nossa publicação, junto às demais, possa ser uma colaboração nesse sentido. E eu digo isto, sem qualquer ativismo feminista, que é claro considero bem-vindo e ainda é necessário… Porque esse livro, do ponto de vista da Tsvetáieva, tem um sentido de “fazer justiça”. Tanto os seis ciclos de poemas quanto os dois ensaios foram por ela escritos como forma de dar uma resposta a algum acontecimento ou ideia. No ensaio a Kuzmin, Uma noite do além,há uma síntese definidora do que seria fazer justiça nos termos da nossa poeta: “O único dever de uma pessoa na terra é para com a verdade de todo o seu ser.” Rainer Maria Rilke, o único que não é russo, mas uma pessoa sem pátria, é um antídoto ao século XX das guerras e revoluções; Púchkin, o principal poeta russo, é negro e foi assassinado pelo poder; Maiakóvski é um dos filhos devorados por Saturno; Blok, o anjo caído; Akhmátova, santa e profana; Pasternak, o irmão na orfandade; nos versos a amiga, Sofia Parnok, a defesa do amor entre mulheres. E em todos, a marca da exclusão e a defesa do excluído, do poeta…

Numa entrevista sobre a poeta, publicada no livro “Aulas de literatura russa”, a tradutora e ensaísta Aurora Fornoni Bernardini diz que Tsvetáieva esteve no limiar de três movimentos, o simbolismo, o surrealismo e o futurismo. Você diz que é “armadilha perigosa” ou talvez “tarefa impossível” enquadrar a poesia dela. Estaria aí a grandiosidade da poeta? Nesta coletânea, por exemplo, seria possível estabelecer a filiação dela a alguma corrente de sua época?

Começando pela primeira pergunta: em certo sentido, podemos dizer que, sim, a grandiosidade de Marina Tsvetáieva está nesta que é, de fato, uma das características principais de sua obra: a recusa em se deixar enquadrar, por definição, como escreveu Joseph Brodsky. Mas não é que ela não adere a nenhuma escola ou movimento; antes, ela se apropria das descobertas de vários deles e, ainda, de artistas e poetas em particular, influências mais ou menos evidentes de sua criação literária. Já com relação à segunda pergunta, a resposta categórica seria, por certo, não. Explico. Os poemas e ensaios reunidos abrangem um período de 22 anos, pegando diferentes momentos da produção, de modo que, naturalmente, percebe-se, como na obra de qualquer artista, influências mais ou menos pronunciadas das tendências da época. Aqui, isto também se nota, por exemplo, nos poemas a Blok, o elemento acentuado do simbolismo, os ecos das prosódias akhmatoviana, maiakovskiana e pasternakiana, a influência da temática do amor homossexual, fruto da relação com Parnok, Púchkin em versos puchkinianos, como ela mesma anuncia etc. Por um lado, é uma aderência às correntes da época; por outro, a tentativa de estabelecer esses elos líricos com seus semelhantes. Contudo, do ponto de vista do conjunto, é uma ruptura e uma defesa: a ruptura com os dogmatismos e a defesa da ideia universal, sem fronteiras, do poeta, entendido como o antípoda da sociedade.

Num dos seus ensaios sobre poesia, a autora diz que não escreve nem para milhões nem para uma pessoa, escreve para a obra. Esta obra é composta por estilos tão diversos como poemas líricos, épicos, folclóricos, além dos dedicados a poetas, como neste Elos líricos. Qual o maior desafio de traduzir esse poema que é espírito desejoso de um corpo, no caso, o corpo da poeta? Que caminhos o poema deve fazer para encontrar também o corpo de uma tradução?

Acho que esta é a pergunta mais difícil. Essa ideia maravilhosa de que o poema é um espírito desejo de um corpo é da Tsvetáieva. Na apresentação ao livro, usei esta imagem como uma proposta de reflexão sobre o que seria, afinal, esse ofício da tradução de poesia? Penso que, na tradução, temos que roubar o espírito de um corpo, a ideia já encarnada, dando-lhe nova figura e deformando, na melhor das hipóteses, o mínimo. Então me parece que os desafios principais são dois: o primeiro é fazer um mesmo e determinado espírito – encarnado – reencarnar em outro corpo; o segundo é aceitar que perder é inevitável, e assim será. Na minha abordagem, busquei recuperar, na medida do possível, senão todos, ao menos os níveis compositivos fundamentais de cada poema (rimas, aliterações, assonâncias, ritmo etc.), no sentido de uma transcriação, conforme propõem os irmãos Campos, minha principal referência no que concerne à tradução poética. Aliás, vale dizer que “transcriação” se aplica muito mais à poesia. Na prosa, ainda que seja uma prosa de poeta, demandando algum nível de transcriação, há uma hierarquia entre o sentido e os demais elementos, ainda que haja subversões de várias ordens. No poema, é outra história, é indissociável, daí se justifica “transcriar”. Mas nem sempre tradução é transcriação. Enfim, além disso, como forma de aproximação do método tsvetaieviano, recorri aos seus escritos teóricos sobre poesia, em especial, um conjunto de textos que poderíamos chamar de “arte poética” de Marina Tsvetáieva. E a outras pistas que ela foi deixando, e eu fui recolhendo, ao longo de sua obra. No ensaio a Kuzmin que citei anteriormente, há algumas muito valiosas, por exemplo, de que o poema se escreve em função do último verso, o qual, todavia, chega primeiro; e que o objetivo da poesia é atingir o coração.

No prefácio de Vivendo sob o fogo, Tzvetan Todorov diz que Marina Tsvetáieva é “uma das maiores escritoras do século XX e seu destino é um dos mais trágicos”. Como podemos relacionar sua escrita a essa vida atravessada por revoluções, guerra, exílio, fome, perdas e complexidades, como a bissexualidade que convive com a extrema dedicação à maternidade e à família?

Realmente, o destino de Marina Tsvetáieva está entre os mais trágicos de uma geração que não foi poupada dos destinos trágicos. A nossa coletânea é uma amostra disto. É comum nos trabalhos e nas biografias sobre a poeta essa expressão, muito bem sintetizada por Todorov. Ocorre que sua vida esteve imbricada, tanto do ponto de vista histórico mais amplo quanto da vida pessoal, em acontecimentos decisivos. Isto, naturalmente, acabou se refletindo em sua produção.

Uma das mudanças mais marcantes em sua escrita é a passagem gradual à prosa, embora tenha se mantido compondo poemas. Há duas principais razões para essa mudança. Uma delas tem a ver com as possibilidades de publicação, já que sua poesia era considerada muito difícil, por um lado, e por outro, do ponto de vista da forma, filiada às experimentações promovidas na Rússia soviética, particularmente nos anos de 1920, quando ainda havia espaço para isto naquele país. A outra liga-se à vida cotidiana. O sustento da família durante muito tempo veio exclusivamente de suas publicações em jornais, revistas e editoras dos emigrados, e de grupos de amigos que se reuniam para apoiar a poeta, numa espécie de mecenato. Tsvetáieva e sua família enfrentaram situações extremas, como ameaça de deportação por falta de pagamento do registro de permanência. A situação só vai conhecer alguma melhora nos anos 30, quando Serguei Efron, a essa altura servindo de agente secreto à União Soviética stalinizada, passa a colaborar com o sustento da casa. Some-se a isto os afazeres domésticos e os cuidados com o filho pequeno, Gueórgui, apelidado Mur, e o resultado é a ausência de tempo para o trabalho. Especialmente as mães sabem do que estou falando. Com as grandes poetas não era diferente! Os poemas demoram muito mais para ser compostos, e assim se dá a vitória da prosa, do cotidiano, sobre a poesia. É importante dizer, todavia, que além de se manter ativa, Tsvetáieva não enfrentava as vicissitudes com autocomiseração. Pelo contrário, lutou de maneira obstinada para sobreviver de seu trabalho, que ela entendia como uma vocação, e em suas narrativas sobre a vida cotidiana, repleta de dificuldades, sempre se encontram comentários e reflexões bem-humorados, de ironia fina e inteligente.

Sobre a relação entre bissexualidade e maternidade, apesar das aparentes contradições nas formulações de Tsvetáieva, para ela, não há contradição alguma, pois pensa o amor de forma livre. Esta compreensão do amor, a meu ver, é um dos traços mais constantes em sua obra, e o amor entre mulheres é um dos temas mais complexos. Além do ciclo A amiga, que faz parte da coletânea, os principais são Carta à Amazona, escrito originalmente em francês, e seu “canto do cisne” Novela de Sônietchka (em tradução bem livre), de 1939, dedicado a outra Sofia, a atriz Sofia Holliday, com quem a poeta teve um relacionamento na primavera de 1919. Sônia é diminutivo carinhoso de Sofia, em russo, e Sônietchka, diminutivo de Sônia, daí a coincidência dos nomes, ocultada, mas também explorada, por Tsvetáieva. Aliás, sua obra está cheia desses pequenos truques. Por exemplo, segundo alguns intérpretes, ela foi embora mais cedo do sarau organizado por Kuzmin, tema de Uma noite do além, não para se encontrar com sua anfitriã, que a esperava em casa, como afirma a Kuzmin e ao leitor, mas para encontrar Parnok, que, por sua vez, havia furado com Tsvetáieva para encontrar-se com outra. Já a discussão da maternidade em contradição ao amor entre mulheres é tema de Carta a Amazona, inspirado pela leitura do livro Pensamentos de uma amazona, de Nathalie Barney, escritora estadunidense abertamente lésbica. Esse texto muito interessante – tanto do ponto de vista do tema quanto da forma (é uma carta, mas traz uma narrativa) – faz parte dos escritos franceses de Marina Tsvetáieva. Para quem tiver interesse, há um capítulo na minha tese chamado “O caso de Sônietchka e outros casos”, dedicado a discutir especificamente os amores femininos da Tsvetáieva, conforme representado, ou “transfigurado”, para usar uma expressão da poeta, em sua obra. Aliás, a Hélène Cixous, homenageada do Clube F. em janeiro, é, na minha opinião, uma das melhores intérpretes dessa carta, em um ensaio magnífico intitulado “La bella y los héroes, la bella y los eros, la bella y los ceros”, que integra uma coletânea de tradução ao espanhol dos textos franceses.