Páscoa Vieira: entrevista com Charlotte de Castelnau-L’Estoile

A história de Páscoa evidencia uma grande diversidade de laços que conectava Angola ao Brasil naquele momento. Como se pode caracterizar os elos que ligam os dois países?

O que está claro para quem vive no século 17 é que Angola e Brasil funcionam juntos. Angola fornece os escravizados de que o Brasil precisa. E quando o país é dominado pelos holandeses [1641-48], são principalmente os luso-brasileiros, e não os portugueses, que vão retomar Angola. São os proprietários de engenhos da região do Rio de Janeiro que vão para a luta porque sabem como Angola é importante. 

Os laços entre os países são vários, existe uma geoestratégia no século 17 que liga os dois. Há numerosas relações administrativas, militares, de comércio — porque diversas famílias participam do tráfico de escravos, e há também a ligação dada pela organização religiosa [da Igreja católica]. O bispo de Angola depende do arcebispo da Bahia, e não do de Lisboa.

Esse lado já tinha sido demonstrado em trabalhos de outros historiadores, como Luiz Felipe de Alencastro, que cunha o termo Angola brasílica. O interessante com Páscoa é que em sua simples história de vida descobrimos tudo isto: há uma vida de escravizada em Angola e no Brasil, seu senhor no Brasil tinha primos em Angola, os religiosos de Luanda que a conhecem vão a Salvador para ser ordenados — e vão aparecer no processo. Existe uma população que faz idas e vindas entre Angola e Brasil, a tal ponto que a ligação entre Angola e Lisboa se faz em boa parte das vezes passando pelo Brasil, até por questões de navegação. 

Chama a atenção a diferença da experiência de Páscoa nascida como escravizada em Angola, onde viveu com sua família, e a de Páscoa  vendida a um senhor de Salvador. Como esses dois tipos de escravidão podem ser comparados?

Temos duas sociedades portuguesas diferentes. No universo luso-africano de Páscoa temos um mundo com uma dimensão africana forte na família Carvalho [proprietária da família de Páscoa]. É importante mostrar que essa é uma família mestiça, ou seja, que tem uma parte africana e uma parte portuguesa, pois o senhor era um soldado português que se casou com a filha de uma família rica local. A escravidão que Páscoa conhece em Angola tem uma forma africana, com uma certa estabilidade: a família de Páscoa pertence a essa família de senhores há três gerações. São escravizados que podem trabalhar no campo e depois virar domésticos ou ter uma profissão artesanal ao longo da vida.

Seu padrinho e sua madrinha pertencem à família de seus senhores, ou seja, existe uma série de ligações importantes com a família proprietária. Isso não se parece com a escravidão de mercado, em que um indivíduo é vendido, comprado em função de critérios de rentabilidade rápida. Nesse caso, há uma estabilidade que é ligada a essa escravidão de forma africana. Essas pessoas não eram vendidas ao comércio atlântico, que as via apenas como mercadoria.

No caso de Páscoa, isso muda no momento em que o genro português [de sua Dona] decide puni-la e vendê-la ao Brasil. É aí que a família luso-africana se torna mais portuguesa e muda a forma de escravidão. Isso permite pensar a complexidade da palavra “escravo” nessa época e nessa sociedade. A vida de Páscoa [como escravizada] será muito diferente em Angola e no Brasil. Em Angola, ela está inserida em uma família biológica e uma família de senhores, ligados por relações transgeracionais. No Brasil, ela se torna alguém com um status de escravizado, que não tem mais família e está ligada a um indivíduo que a comprou. Ela vira um indivíduo isolado. E isso me interessou na história de Páscoa, porque ela é um indivíduo isolado que em sua nova vida vai rapidamente construir laços. Ela se casa, e as testemunhas de seu casamento [escravizados de outros proprietários e negros livres] mostram uma nova sociabilidade. 

Por que é tão importante para a Igreja católica regrar esse casamento e dedicar sete anos para investigar a vida afetiva de uma mulher escravizada? 

A justificativa da escravidão é econômica, mas está claro que no mundo português, desde o começo, há a ideia de que a escravidão permite a cristianização — o que não é o caso da escravidão no mundo inglês. A fé é uma compensação da escravidão. 

O aspecto fundamental desse casamento entre negros e indígenas para a Igreja é demonstrar a construção de uma sociedade cristã no espaço do Brasil, com indígenas e negros convertidos e com os portugueses que se mantêm cristãos. A Igreja vai reivindicar a possibilidade do casamento entre escravizados como um sinal de coerência dentro de seu projeto geral. 

O casamento é o reconhecimento do consentimento, algo que é da dimensão da liberdade. Nesse sentido, o casamento é revolucionário nesse sistema. Um escravizado nunca pode dar seu consentimento para nada; pode ser vendido, punido, alugado, e ninguém nunca vai perguntar sua opinião. Mas nesse caso, por razões normativas da Igreja, será dado ao escravizado o consentimento. Há um conflito em potencial entre os senhores e a Igreja, mas a Igreja vai dar garantias a esses senhores. Os escravizados poderão se casar, mas continuarão completamente assim, sem direito a consentimento, exceto para a escolha do companheiro. O casamento não vai lhes dar nenhum direito civil e nenhuma autoridade sobre seus filhos.

Mas, nessa sociedade, os escravizados entendem muito bem que o casamento dá uma perspectiva de autonomia, e eles vão utilizá-la. Páscoa escolheu Pedro como seu marido [no Brasil], que também era escravizado do mesmo senhor. Durante a contrainvestigação que os dois fazem [para se defender da denúncia de bigamia], vemos que Pedro e Páscoa vão se apropriar de seus direitos diante da Igreja para exigir uma vida juntos [após Pedro ter sido vendido a outro senhor]. E Pedro e Páscoa fazem valer seu direito nesse momento. E Páscoa não é a única. Nos processos de banho [matrimonial] do tribunal episcopal do Rio de Janeiro encontrei muitas Páscoas entre os 75 casos que analisei.

O livro faz uma defesa da micro-história para entender a história global. De que maneira você vê, no contexto das manifestações do Black Lives Matter, os debates sobre retirada ou manutenção de homenagens a figuras que participaram como opressores nos processos de escravidão?

De certa forma, escrever a história de Páscoa é uma resposta. A sua vida é preciosa. É uma mulher solapada pela crueldade dos eventos mas que faz sua vida da maneira como pode, e seu destino pessoal importa. O papel dos historiadores não é de criar estátuas, mas trabalhar em uma perspectiva que dá voz aos que tiveram suas vozes silenciadas. É preciso restituir ao passado sua complexidade. 

No Brasil, especialmente, acho muito importante a produção de biografias de escravizados, pois eles construíram a sociedade brasileira. É preciso que as histórias humanizadas desses escravizados sejam conhecidas pela população, que as pessoas possam se orgulhar dessa ascendência. Se meu trabalho pode servir a isso, por que não? Mas meu objetivo primeiro é mostrar a complexidade das sociedades escravagistas, surpreender o leitor e levá-lo à reflexão.

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